07 – O Conto de Dois Irmãos
O conto de dois irmãos
*Baseado na música: To Say Goodbye
Obs: ligue a música antes de começar a lerRicardo permanecia deitado no chão imundo onde tinha morrido. Dante tinha se sentado ao lado da sua nova criança e olhava para o nada.
Os dois estavam assim há quase uma hora até que Ricardo começou a chorar.
– Dói, não é? – perguntou Dante ainda olhando para o nada.
– Por quê tanto?
– Você achou mesmo que seria fácil perder a alma?
– Morrer deveria ser mais fácil que viver…
Dante pensou um pouco antes de responder.
– E é, em partes. Mas você não morreu, não completamente. Temos o pior dos dois mundos, a morte e a agonia de permanecer caminhando.
Dante abraçou as pernas ainda sentado no chão, se lembrou de quando era criança e se sentia desamparado.
Dante, a criança, sentia a dor de ser surrado na rua por vários meninos. Via os hematomas que demoravam a passar por causa de sua tez pálida. Nessa época ele se sentava assim, abraçando as pernas. E agora, que ele sabia que tudo teria um fim, sentia-se tão desamparado quanto.
Chorar tinha ajudado Ricardo a se recuperar, e aos poucos conseguia raciocinar.
– Por que fez isso comigo?
– Alguém tinha que ficar vivo para contar essa história, pela eternidade.
– Como assim?
Dante olhou para o rosto confuso de Ricardo e imaginou como a sua cabeça estaria lidando com a insanidade, qual seria a fuga dele. E achou que tinha que contar tudo para alguém antes do fim.
Dante se levantou e recitou Hamlet:
“Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir… é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.”
– Sei que é trágico demais da minha parte, mas todos morrem hoje.
– Morrem de novo?
Dante se lembrava perfeitamente do velório de seu único amigo e irmão. Via com clareza o padre falando e se tentasse, ele tinha certeza, que conseguiria recitar palavra por palavra. E sentia ainda hoje o mesmo vazio.
– Sim, Ricardo. Vamos todos morrer de novo.
…
Dante criança olhava com admiração para seu irmão mais velho, seu único amigo. Ele estava brigando com os meninos que bateram nele.
Ninguém tratava o garoto com a mínima cortesia, ao contrário, o tratavam pior que a um escravo. Escravos ainda tinham função, enquanto ele era apenas uma aberração da natureza.
Ele era filho de um comerciante de tecidos português, ilegítimo. E nem mesmo sua mãe, que era prostituta, o quis.
Por uma licença poética ela deixou apenas o nome ao garoto. Um pedaço de sua antiga pátria. Apenas algo para afastá-lo ainda mais das outras crianças.
O seu irmão era o único que se importava com ele. E apesar de não serem filhos da mesma mãe, Dante sabia o que era amor fraterno.
– Você tinha um irmão? – espantou-se Ricardo.
– Sim, e fui traído. Ele era mais velho, entende? Cuidava de mim! Até que decidiu morrer.
Dante não conseguia conter a enxurrada de lembranças e as ia descrevendo de forma desconexa. Apenas a mente de um filho seu poderia compreender aquela história.
Em uma das surras que levou, o menino Dante sangrava muito, seu protetor também se feriu naquele dia, e fez um juramento: Que iria defendê-lo sempre!
– E eu acreditei, entende? Era um pacto de sangue, jovem Ricardo. E esse não é um voto que se quebre levianamente!
Dante caminhava impaciente pelo quarto sujo.
– E quando ele morreu, fiquei só no mundo.
A vida de Dante após a morte de seu irmão era um pesadelo.
A cada dia sua alma formava um vácuo de sentimento. Logo ele se tornou frio e não sentia mais nada.
Só tinha em seu peito a certeza inexorável que um dia a morte também o abraçaria.
– Mas eu o vi! Um dia eu o vi caminhando em um beco. Achei que tinha perdido minha sanidade naquele dia, mas era real. Já fazia mais de dez anos de sua morte e era como se nem um dia tivesse se passado. Eu não conseguia entender!
Dante parecia muito agitado contando suas desventuras a Ricardo, que olhava com curiosidade para toda aquela cena.
– Busquei então nosso pai e disse que meu irmão estava vivo! Falava para quem quisesse ouvir, ELE ESTAVA VIVO!
O grito de Dante assustou Ricardo. O velho vampiro gargalhava se lembrando da sensação de descobrir que “ele” estava vivo.
De repente ele parou.
Olhou para o teto, abriu os braços e ouviu os gritos nas ruas.
Ricardo podia jurar ter visto seu mestre sorrir diante do grito dos inocentes.
Dante se voltou seu olhar para Ricardo e se aproximou de seu rosto devagar.
– E sabe o que fizeram comigo? – sussurrou ao seu “filho” – eles me trancaram em um hospício!
Dante olhou em volta assustado, como se estivesse contando um grande segredo.
– Eles não, ELE! Meu próprio irmão. Que queria manter sua nova vida em segredo.
Os barulhos da rua pareciam cada vez mais altos. O caos estava chegando naquela casa como uma tempestade.
– E foi lá, jovem Ricardo, que conheci meu mestre. E foi lá que descobri as artimanhas de meu irmão.
Quando o barulho dos gritos não puderam mais ser contidos a porta da frente se escancarou!
Uma voz irada ecoou em toda a casa:
– DANTE!
O mesmo se levantou para encarar seu oponente, seu inimigo mortal, Filipo. Que estava sujo de sangue dos pés à cabeça.
– Olá, irmão. – disse Dante, sorrindo.
– Olá pequeno irmão. Isso acaba hoje.